Como Alice
quando atravessa o espelho e cai no País das Maravilhas, Badi Assad começou
radiante o processo do novo disco. É que, como Alice, Badi vivia encantada,
achando que aquele mundo (no caso, o nosso mundo) era somente bondade e
alegria. A sensação se refletia em música e Badi só ouvia e fazia canções
doces. E calmamente as reunia para o disco que sucederia o delicado “Verde”
(2004).
Como Alice que descobre aos poucos que o País das Maravilhas é também cheio
de maldade e ilusão (como diria Caymmi), Badi teve, como qualquer pessoa,
problemas pessoais que a fizeram sair do mundo idealizado (da arte, da
beleza, da estética) e cair na real. O fio inconsciente de sua criatividade
musical logo pendeu para um outro lado. Ela começou a ouvir e a compor
canções mais, digamos, estranhas, a enveredar por um universo mais barra
pesada, ainda que na superfície a beleza e a poesia continuassem a comandar.
Comecei a notar que, inconscientemente, as canções que eu começava a reunir
para o disco tinham algo em comum: falavam da fragilidade humana e dos
problemas do mundo. Diz Badi, a violonista (uma das maiores de sua geração)
e cantora que domina tão bem a sua arte, sabe tão bem o que quer, que num CD
de canções tão esteticamente díspares (de um velho samba de Billy Blanco a
uma canção de um grupo de ponta da cena eletrônica britânica como o Asian
Dub Foundation) consegue não apenas fazer um trabalho ultra-autoral como
defender um conceito forte. Portanto, em vez de uma singela continuação de
“Verde”, nasceu Wonderland, o irônico título tirado do nome original inglês
da obra-prima de Lewis Carroll, “Alice no País das Maravilhas”. O livro
chegou às mãos de Badi, já no meio do processo do disco, por sugestão de
Chico César (presente com a letra de Zoar), que intuiu para onde ia a
inspiração da amiga e parceira. Como no País das Maravilhas de Alice, no
mundo de Badi tudo é belo e possível, mas por trás da beleza e das infinitas
possibilidades escondem-se preconceito, racismo, violência, injustiça e o
corolário de mazelas que vemos atônitos todos os dias.
Um mundo “estranho, bizarro” como o descrito em Acredite ou não,
suingadíssima canção de Lenine e Bráulio Tavares que abre e sintetiza o
conceito de Wonderland. Acredite ou não, aliás, está ainda mais
desconfortável e atual do que quando lançada, 15 anos atrás, no histórico
disco de Lenine e Marcos Suzano, “Olho de peixe”. Versos como “Tempestade no
deserto/ Maremoto na piscina/ Rififi na Palestina/ Bang-bang no Borel” soam
ainda mais estranhos e bizarros num mundo pós-Tsunami, da Intifada e do
Hamas no poder, da guerra civil decididamente deflagrada nos morros cariocas
ou nas ruas de Paris.
Doce e firme, Badi Assad vai desfiando lindamente as chagas do mundo que sua
escolha inconsciente foi amealhando pelo cancioneiro mundial, de ontem e de
hoje, sem qualquer barreira estética, guiada apenas por sua musicalidade.
Assim, ela fala de preconceito no samba A banca do distinto, de Billy Blanco,
o de versos certeiros: “Não fala com pobre/ Não dá mão a preto/ Não carrega
embrulho/ Pra que tanta pose, doutor?/ Pra que esse orgulho?”. Fala de
estupro (e dá um show de violão) na misteriosa canção Black dove, da cantora
e compositora americana Tori Amos. A suavidade da canção de Tori e da
interpretação de Badi é o contraponto irônico à barra pesada do tema, tão
dentro do espírito de Wonderland.
Fala de alcoolismo em Vacilão, originalmente um samba de Zé Roberto gravado
por Zeca Pagodinho, transformado aqui em blues (com direito a Badi no violão
de aço) com a participação vocal de Seu Jorge. Foi o hoje internacional
cantor de São Gonçalo quem apresentou a Badi o samba gravado por seu
“cumpadi” Zeca. A cantora entrou num trem no interior da França e, lá
dentro, estavam Seu Jorge e outros músicos brasileiros levando um pagode na
volta de um show. Foi ouvir a história do sujeito que volta para casa
“doidão”, para sua intuição perceber que o samba tinha tudo a ver com
Wonderland. Fala da perda de identidade cultural em From United States of
Piauí, velho baião de protesto de Gonzaguinha, cuja história da prima do
Piauí que deixou de fazer renda para ver novela ganha nova dimensão num
mundo em que a globalização (intuída na música) transformou-se na questão
central.
Fala do perigo da prostituição na juventude em O mundo é um moinho,
obra-prima de Cartola, outra canção que tão bem sintetiza o espírito de
Wonderland (“Preste atenção, querida/ De cada amor tu herdarás só o
cinismo”, poderia ter sido escrita por Lewis Carroll, dada a sua cruel
singeleza) e que ainda dá espaço para inspirado solo ao violão de Badi. Fala
de violência familiar em 1000 mirrors, do Asia Dub Foundation, canção que
cresceu muito no arranjo acústico e pesado que Badi apresenta.
São tantas e tão líricas as mazelas desfiadas por Badi que descritas assim,
em palavras, podem dar a falsa impressão de que se trata de um disco feito
com mão pesada. Não é nada disso. Wonderland capta o espírito da “Alice” até
nisso, no desespero contido, na crítica irônica, no frescor do olhar.
Para tanto, muito contribui a produção de Jaques Morelenbaum, que criou para
Badi uma pequena banda composta por solistas de primeira linha da nossa
música popular –– Carlos Malta nos multissopros, Zeca Assumpção no
contrabaixo, Marcos Suzano nas percussões, e mais o próprio Jaques no
violoncelo. Além de envolver as canções em uma atmosfera moderna, ele abre
um generoso espaço para o violão virtuose da artista principal. O que mais
me chamou a atenção no trabalho do Jaques foi a maneira com que ele conduz
as gravações na intenção de tirar o que cada um tem de melhor, diz Badi.
A cantora queria o som de violoncelo em seu disco. Abriu um show no Olympia,
em Paris, para a cantora portuguesa Marisa, produzida por Jaques Morelenbaum.
Começou ali a sonhar em convidá-lo para ser seu produtor. Achou, contudo,
que era sonhar demais ter à disposição o renomado e ocupado produtor de
Caetano Veloso. Ainda assim mandou um e-mail para o maestro, que topou na
hora. Morelenbaum não apenas dá cores modernas aos arranjos
ultra-violonísticos escritos por Carlinhos Antunes, Sérgio Assad (seu irmão,
do Duo Assad) e Clarice Assad (sua jovem e promissora sobrinha) como
empresta uma leveza musical que se contrapõe e evidencia a barra pesada das
canções.
Mas nesse sentido nada supera a faixa final. Depois de tantos problemas,
tanta angústia, tanta escuridão contida nas canções, Badi canta a que talvez
seja a canção mais solar de todos os tempos, mais comprometida apenas com a
leveza e com a singeleza, mais gratuita em termos de felicidade, Estrada do
sol, de Tom Jobim e Dolores Duran. Aqui cabe um parêntese: uma das músicas
mais tristes do disco, A banca do distinto foi feita por Billy Blanco
inspirada num sujeito que ia ao Beco das Garrafas, no fim dos anos 50 no
Rio, ouvir Dolores Duran cantar. Não falava com ninguém, era esnobe a não
mais poder e quando queria ouvir alguma canção específica mandava recados
pelo garçom: “Pede para a negrinha cantar isso”, “Pede para a negrinha
cantar aquilo”. Mal sabia ele que, nas horas vagas, a “negrinha” escrevia
letras como a de Estrada do sol para canções solares de Jobim. E que, um
dia, Badi Assad a gravaria como contraponto a todo e qualquer pensamento
racista...
E não é a Badi de hoje que canta o Estrada do sol. Ela recuperou duas
gravações caseiras que fez com pai, aos quatro e seis anos de idade. Estas
revelam sua inata musicalidade e fecham o seu disco mais maduro. Mais do que
isso, trazem a voz da própria Alice, como se ela tivesse pulado do livro
para continuar a descrever nosso belo e triste país das maravilhas.
Hugo Sukman
Abril/2006 |