Nem chapliniano, nem felliniano. A genialidade de Nelson Antônio da Silva era ser Nelson Cavaquinho. Certa madrugada no Leblon, voltando para casa com Paulinho da Viola, passávamos ao largo de uma feira que estava sendo armada, quando a bonita figura de despenteados cabelos brancos, abraçada ao violão, prendeu nossa atenção. Cumprindo sua sina, Nelson Cavaquinho cantava na noite, para quem quisesse ouvi-lo, e os feirantes queriam.
A voz rascante, lixada pelo líquido de um milhão de botequins, fluía acompanhada pelo som beliscado das cordas feridas por dois dedos - técnica e estilo reconhecíveis a quilômetros. "Sei que estou / nos últimos degraus da vida / meu amor..." cantava o profeta dos desenganos, o arauto das desilusões, o menestrel da angústia. O eterno pavor da morte refletindo-se nas letras doloridas de seus sambas, nos dramas de seus personagens, nas inquietudes de suas musas. Rei dos botequins do Rio de Janeiro, tinha seu quartel-general nos balcões molhados da praça Tiradentes. Nesses cenários encontrava seus iguais, suas inspirações, sua forma de viver e ser feliz a sua maneira. A Nelson não interessavam fama e fortuna.
Violão, samba, mulheres, botequins, a soma e a essência da felicidade, a forma e a maneira encontradas de ser feliz cantando a infelicidade e de ser alegre exaltando a tristeza. Carioca de São Cristóvão, o imperial bairro de rica musicalidade, berço de - por exemplo - Sílvio Caldas, Nelson nasceu em 28 de outubro de 1910 e viveu intensamente. Começou tocando cavaquinho (daí o apelido) na adolescência e, como o pai era contramestre da banda da Polícia Militar, acabou por se tornar soldado em 1930. Casou, descasou, trocou de mulher e de instrumento, passando para o violão e criando sua maneira personalíssima de tocar. Já boêmio da mais fina extração, freqüentava os redutos de samba, principalmente na Mangueira, onde se fez amigo de Cartola, Carlos Cachaça, Zé da Zilda e outros compositores, iniciando-se na arte de criar sambas.
Totalmente desapegado de bens materiais, vendeu grande parte de sua produção, ou pagou dívidas dando parcerias a desconhecidos. A melhor fase de seu trabalho surge quando se une em parceria com Guilherme de Brito, ao qual foi apresentado em um botequim da praça Tiradentes. Jamais conseguiu (nem pretendeu) ganhar mais que o necessário para sobre-viver. Tornou-se mais famoso e conhecido depois dos sessenta anos, morrendo como viveu, no Rio de Janeiro, em 18 de fevereiro de 1986.
Arley Pereira
A História da Música Brasileira Por Seus Autores e Intérpretes
SESC/TV Cultura
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