Conheço Fernando Salem há mais tempo do que o tempo que vivi antes de conhecê-lo. Ele foi uma das primeiras pessoas que presenciei fazendo música com desenvoltura e convicção; desde cedo conformado a esse destino de compositor, cantor, instrumentista.
Compusemos em parceria algumas canções, no final dos anos 70/ início dos 80. Lembro-me também de ter escrito nessa época uma apresentação para o programa de um show dele com Paulo Miklos e a banda
BomQuixote, no teatro Lira Paulistana.
Já estavam esboçados ali alguns dos traços que apresenta agora, com mais definição e maturidade, nesse Disco - swing, competência instrumental, sofisticação melódica, apuro formal das letras.
Então Fernando foi para a Europa, como violonista de um grupo instrumental. Ficou por lá uns anos; período em que trocamos pelo correio algumas mensagens cantadas em fitas cassete. E por aqui fomos gestando o que veio a se tornar os Titãs. Alguns integrantes do Choro Roxo, que é como chamava a banda que o levou, acabaram ficando por lá até hoje. Fernando voltou em 83.
De lá para cá montou bandas, fez a direção musical de programas de TV, compôs canções para CDs infantis, escreveu roteiros e realizou trilhas para cinema, TV e publicidade.
E eu sempre achei que ele vinha nos devendo um disco mais autoral, como esse que nos oferece agora; polpa saborosa de
samba-funk, temperada em bossa, baião e outras ondas. Com surpreendentes soluções de encaixe rítmico-melódico para as letras, que fluem como crônicas de costumes de nosso tempo, com humor e frescor.
E também com aspereza, como na vertiginosa personificação feminina dos meios de veiculação da informação em Mídia, onde reconhecemos na melodia uma paródia parente daquele repertório romântico-brega da sua banda Vexame, o que acentua a ambigüidade entre meio e musa ("Mídia" vira um nome de mulher). Ou como sintetiza o excesso desses acessos e assédios da comunicação, em Informação, e o mordaz resultado dessa desproporção na genial Cinco Minutos ("ele quer os seus 5 minutos / de 1 metro quadrado / de aldeia global"), que encerra apresentando o arranjo de sonoridade mais ousada de todo o Disco.
Abrindo já de cara com um funk chamado (e tematizando) O Samba (onde um rap embutido desabrocha numa batucada), Fernando dá o cartão de visitas de sua sonoridade, capaz de curvas e arestas, de doçura e violência. Metralhadora anunciando o samba.
E conforme se sucedem as faixas, uma a uma, vão confirmando seu talento em adequar as palavras ao canto. Assim ocorre em Amigo, onde o fluxo encadeado de negativas ("hoje não tem festa / não tem fogos de artifício / não tem vício / nem presente nem
bebum") parece desdobrar sua divisão quando deságua no refrão afirmativo ("eu tô atrás de um amigo / eu quero ter um amigo / aonde tem um amigo / nessa multidão). Ou na misteriosa Ela Sumiu - música para sussurrar - com sua sinuosidade melódica apresentando imagens muito vivas, como num filme, para descrever o desaparecer.
Em Árvore (parceria com André Abujamra), que subverte a acentuação da palavra-título, transformando propositadamente a proparoxítona em oxítona
("arvorí"), efeito que possibilita as rimas surpreendentes, ao mesmo tempo em que gera um sotaque estranho, trazendo algo de infantil para a canção. Ou ainda em Trauma, onde a palavra "trauma", deslocada do final de alguns versos, é usada como uma espécie de pontuação rítmica.
Essa capacidade de adequação dos versos às linhas melódicas acaba reverberando também nos arranjos precisos e bem-acabados, na intenção de cada entoação, na escolha dos timbres e nos efeitos, usados com justeza e elegância.
Fernando tem essa qualidade rara de conjugar swing a densidade harmônica; "onde a onda vê o chão". E o resultado apresentado em Disco, síntese de sua musicalidade desenvolvida nesses anos todos (como não perceber ecos de sua banda Vexame em Mídia, de sua ex-banda Clínica em Trauma, de suas criações infantis em Árvore, de suas trilhas para cinema em Ela Sumiu, de uma resposta ao universo da publicidade em Cinco Minutos?), soa com a naturalidade de quem desenvolveu uma relação muito amorosa com a música popular. "O sol é o compositor / A paisagem é canção".
Arnaldo Antunes
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