Sua vida poderia ser um desses folhetins baratos, daqueles
que se folheiam e depois são atirados na lata de lixo mais próxima. Qual o quê! É um
romanceiro, piegas às vezes, mas quase sempre denso, e nunca monótono.
Nasceu Vicentina Paula de Oliveira, nome banal para quem iria fazer o
Brasil inteiro atirar-se a seus pés, com sua voz filetada a ouro, estilhaçadora de
cristais, predestinada a cantar sob uma eterna luz de um abajur lilás.
Foi num 5 de maio de 1917 que Dalva de Oliveira veio ao mundo, na cidade
paulista de Rio Claro. Filha da portuguesa Alice do Espírito Santo de Oliveira e do
mulato festeiro Mário de Oliveira, o Mário Carioca, marceneiro na Companhia Paulista de
Trens e tocador de saxofone nas horas vagas, fazedor de filhas: quatro. Sua vidinha de
menina pobre poderia se contada em vinte ou duzentas laudas, sem que ninguém confiasse
numa vírgula que fosse relatado. A receita que lhe foi dada pelo destino, convenhamos,
era amarga: foi ser faxineira, costureira - tudo bem, profissões dignas. Mas uma quase
cegueira? logo naqueles olhos verdes da mulata, tão cismadores e fatais?
Passagem por orfanato, infância com poucos brinquedos, mas, felizmente,
com muita música. A vida lhe reservaria algumas tragédias. Mas podemos fotografá-la em
muitos momentos: cantando, por exemplo, no alto de um banquinho, acompanhada pelo pai, e
depois sob a lona de circos, já adulta. Nada fazia prever que aqueles olhos verdes iriam
cegar multidões. Fez-se cantora por vocação, e quase nunca feliz por desíginio.
Juntou-se à dupla Preto e Branco, para depois formar o célebre Trio de Ouro, logo
sintonizado por Villa-Lobos que, pelos quatro cantos, espalhava que ali estava a maior
cantora do Brasil. O branco da antiga dupla, é bom que se esclareça, era Herivelto
Martins. Um dos maiores compositores brasileiros de todo os tempos. Com que, aliás, se
casou e teve dois filhos, Pery e Ubiratan. Pery herdaria a voz e os olhos da mãe, e o
imenso talento do pai. É bom não esquecer que o negro da dupla era Nilo Chagas, que,
igual a Ismael Silva, era conhecido também como um negro de alma branca - sem atinar para
a carga pejorativa desse aparente elogio.
A ruptura do casamento de
Herivelto e Dalva foi manchete escandalosa de
todos os jornais e provocou a mais polêmica das polêmicas musicais já acontecidas
no Brasil. Desfeito o Trio de Ouro em 1949, Dalva assume sua carreira solo. Se Francisco
Alves era o Rei da Voz, faltava uma rainha para o trono. Dalva, claro. As prensas da Odeon
eram insuficientes para atender aos sucessos que jorravam de sua voz, de agudos
fulminantes. Enquanto isso, Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim escrevia alguns
arranjos para ela. A partir de 1951, praticamente não se ouvia outra voz nas paradas de
sucesso - apesar das estrelíssimas Linda e Dircinha Baptista, do surgimento de Emilinha
Borba e Marlene que, aliás, lhe entregaria o cetro e o trono de Rainha do Rádio, e que
seria um dia entregue a uma outra mulata, igual a Dalva, modesta, chamada Ângela Maria.
Dalva trilhava a escola de Aracy Cortes, Ângela agora seguia o rastro de
Dalva. O casarão na Rua Albano 142, em Jacarepaguá, conhece em 52 um novo habitante, o
argentino Tito Climent, que passa a administrar sua vida, fazendo-a retirar-se do Brasil
por um tempo, sob os olhos suspeitos dos amigos da Rainha.
Casou-se com ele numa igreja de Montmartre. Foi levada a Londres para
gravar com a famosa Orquestra de Roberto Inglez e, de lambujem, soltar seus agudos diante
da Rainha da Inglaterra. Na Argentina sua voz juntou-se aos bandoneóns de Francisco
Canaro e seu grupo de tangos. Um outro amor surgiria, ela já com 47 anots, Nuno com 19.
Amores, desditas, tragédias, quem não as teve? Dalva sabia como
desatinar sua vida, arebanhar inquietações, jogar seu barco na tempestade.
A imprensa continuava monitorando sua vida e seu copo, e um fato novo
novamente a coloca nas manchetes dos jornais: um desastre pavoroso em seu carro deixa, em
agosto de 1965, um rastro de mortos no caminho, e aquela mulher de baixa estatura, cabelos
agora alourados, vê-se atirada, agonizante, num hospital. Todo o país fica com a
respiração suspensa, uma pergunta sufocando as gargantas: voltaria a cantar? Escapou e,
com seu novo e jovem amor, voltou para "seu Shangri-lá" na rua Albano, que
sofreria uma reforma inacabável. Do acidente sobrou uma cicatriz, rasgando-lhe o rosto.
os tempos eram outros, uma nova geração surgia e sobrou pouco espaço para aquela voz
embargada de lágrimas e soluços, com o sentimento transbordando à flor dos ossos.
Poucas cantoras atingiram uma escala de empatia com o público como Dalva.
Com a bebida pontuando sua vida, ela fez-se refletir no espelho das canções que, de
alguma forma, rasuravam suas desditas. Mas sempre reverenciando seu público, as mãos
cruzadas sobre o peito, num discurso sincero: "É como sempre digo, eu não tenho
fans, tenho amigos. Obrigada". Rica às vezes, infeliz quase sempre, andando de
ônibus no final da vida - ela se autobiografa modestamente em seu folhetim, ocultando ter
sido quem realmente foi: não somente Rainha, mas Porta-Voz de todos aqueles que ficaram
à margem da vida.
Vida que ela a deixou às 17:15 horas de um 31 de agosto de 1972,
espalhando um rastro de luz e um fio de voz que, até hoje, se esparrama qual um prisma
luminoso sobre todas as vozes que, de alguma forma, foram embevedar-se em seu coração.
Hermínio Bello de Carvalho
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